terça-feira, 19 de novembro de 2013

LIRA DOS QUINZE ANOS * ANTONIO CABRAL FILHO


Oh que alívio que eu tenho
daqueles colegas de infância
com seus mundos cor-de-rosa,
heróis de história em quadrinho,
coca-cola, chiclete, carmanguia,
lencinhos perfumados, documentos,
sem sombra de movimentos
que os anos não trazem mais.

Como eram frios os versos
profundamente românticos!
Mas contra os versos
profundamente românticos
a alma dos versos meus
é francamente livre
e cospe na cara do eu-lírico
que caça borboletas azuis.

Oh que alegria que eu trago
das minhas gazetas da infância,
daquelas tardes jongueiras
à sombra dos oitiseiros
entre o Largo da Carioca
e o Tabuleiro da Baiana
com tudo quanto é quitute,
cuscuz, cocada, quindins
e os chamegos da mulata.

Oh que saudades que eu tenho
da minha Avenida Central,
avenida dos meus sonhos
colhidos na Cinelândia
e comidos nos Arcos da Lapa
por alguma linda Brigite
com beijo gosto de menta
e seios de Marilyn Monroe.

Pobre do espírito pudico
que nunca esbarrou com Cupido!
Jamais se esbaldou
nas tabernas da Praça Mauá
degustando "Cuba-Libre"
com as nossas Bardots,
nem trocou beijos calientes
entre senha e contrassenha
com alguma companheira
aos cicios "pela revolução!"
nas esquinas da Rio Branco.

Livre filho suburbano
desfilava satisfeito
por meu boulevard sem Paris
da minha Avenida Central,
que só virou Rio Branco
para agradar ditos-cujos,
e ria com meus olhos leigos
da anarquia arquitetônica
daquele casario sem eiras,
que o Pereira "passo" extinguiu
com um só "bota-baixo".

Naqueles tempos ruidosos
de ardente adolescência,
papai montava a cavalo
e saia pra campear,
mamãe brandia o chicote
e o leite fervia
no fogão a lenha,
eu era pingente de trem
e oficie-boy da Light
e Che Guevara era bandeira
nas barricadas de Paris.

Ai que saudades que eu tenho
da Avenida Rio Branco
como um palco a céu aberto
p'rum coro de cem mil vozes
cantando Geraldo Vandré:
"Vem, vamos embora,
que esperar não é saber.
Quem sabe faz a hora
não espera acontecer."

Mas "saudade" que eu sinto,
"saudades" que me doem fundo mesmo,
são da Avenida Rio Branco
na passeata dos Cem Mil
no auge dos meus quinze anos,
daquela gente bronzeada
mostrando tanto valor
só pra mudar o Brasil,
dos "bailes" que eu dei nos "ome"
na Biblioteca Nacional
com o saco de bola de gude,
do Wladimir trepado no poste
gritando "Abaixo a Ditadura!"
alheio ao gás lacrimogêneo,
das balas com endereço certo
e o sangue correndo solto......
...................................................
São "saudades" que a palavra
lhes recusa a assinatura,
coisas muito duras para esquecer
como diz o Rei Roberto,
mas me fazem muito bem
que os anos não tragam mais.

Por isso eu sigo cantando
"Caminhando" com Vandré:
"Vem, vamos embora,
que esperar não é saber.
Quem sabe faz a hora,
não espera acontecer!"





POESIA.NET 298 * CARLOS MACHADO - SP


poesia.net 298 - Frank Bidart
Número 298 - Ano 11
São Paulo, quarta-feira, 20 de novembro de 2013
poesia.net header
«Todo trabalho é a véspera / de um sonho.» (Hélio Pellegrino) *
Frank Bidart
Frank Bidart
 
Caros,

Tomei conhecimento do poeta americano Frank Bidart por acaso. Alguns anos atrás, li no New York Times a resenha de um livro dele. Lá, o resenhista citava um poema que me impressionou muito. Recentemente, li sobre novo lançamento de Bidart, e acabei adquirindo dois livros dele: Star Dust (2005) e Metaphysical Dog (2013).

Nascido na Califórnia em 1939, Frank Bidart é professor de inglês no Wellesley College, em Boston. Estudou na Universidade da Califórnia e em Harvard, onde se tornou aluno e amigo de poetas como Robert Lowell e Elizabeth Bishop. Estreou em 1973 com o volume Golden State, que passou em branco. Só dez anos depois, com o livro The Sacrifice, ele começou a conquistar maior atenção da crítica e dos leitores.

Uma curiosidade: ganhador de vários prêmios importantes, Bidart é, até agora, o autor do único folheto que se tornou finalista do Prêmio Pulitzer (Music Like Dirt, 2002). Depois, os catorze poemas desse opúsculo foram incluídos como uma seção do livro Star Dust.

Elogiadíssimo pela crítica, Frank Bidart já escreveu poemas assumindo o ponto de vista de diferentes personas, como "Ellen West", mulher portadora de uma doença do aparelho digestivo, ou "Herbert White", um psicopata. Homossexual assumido, o poeta também produz textos confessionais, sobre seus sentimentos ou sobre sua família. Em Metaphysical Dog, por exemplo, ele cita uma avó espanhola racista que não deixou a mãe de Bidart se casar com um médico libanês por ele ter a pele "muito escura".


                      •o•


Tanto quanto sei, o trabalho de Frank Bidart nunca foi divulgado amplamente no Brasil. Na internet, não consegui localizar nenhuma menção a ele em site de língua portuguesa. Então, com os dois livros de Bidart na mão, decidi arriscar-me na tradução de alguns dos poemas. Transcrevo ao lado sete deles com minhas tentativas de tradução.

Traduzir, naturalmente, é uma tarefa espinhosa. Veja-se, por exemplo, o caso do poema "Canção" (Song). Ao longo do texto, o poeta repete a expressão Crawl in como se fosse um refrão. Dois monossílabos e um imperativo: rasteje para dentro, engatinhe para dentro (da toca de urso). Não há como dizer isso em português de forma tão breve. Optei então por usar, no corpo do poema, o comando "Entre". Só na última frase usei uma forma mais extensa: "Rasteje e entre".

Outra reiteração no texto está na expressão cease to exist (deixar de existir). Bidart aprecia esse procedimento. No poema seguinte ele aparece no próprio título: "Estrofes terminando com as mesmas duas palavras". Aqui, as palavras são "tua morte" (your death). Um detalhe: "Estrofes...", assim como "Martelo" e "Injunção" são poemas que originalmente integravam o folheto Music Like Dirt. Esse título, segundo nota do autor, é o refrão de uma música do cantor e compositor de reggae jamaicano Desmond Dekker (1941-2006).

Escolhi o poema "Rio" pela sua estranheza e, obviamente, pela referência ao Rio de Janeiro e a Carmen Miranda. Trata-se de uma cena em que alguém, que não foi chamado, chega a uma casa dizendo: "Estou aqui para consertar a porta". Nada se esclarece nem sobre o suposto prestador de serviço nem sobre o dono da casa. Não se sabe sequer se há problema na porta, nem que porta é essa. Um pequeno episódio trivial e absurdo.

O último texto é "Sonho revela em neon os grandes vícios". Aí alguém sonha, acorda e depois analisa suas próprias atitudes diante do sonho. Uma peça freudiana. Neste poema, Frank Bidart lança mão de dois recursos comuns em seu trabalho. O primeiro é o uso de letras maiúsculas para enfatizar a leitura de certas palavras. No caso, AMOR, PODER, FAMA, DEUS e ARTE. O segundo recurso também situa-se no campo das marcações gráficas: trechos em itálico sinalizam a presença de outra voz, ou outro ambiente. Aqui, os letreiros em neon aparecem no sonho.
 

Um abraço, e até a próxima,


                      •o•

LANÇAMENTO
Affonso Manta
Antologia Poética

Affonso Manta - Antologia PoéticaDica para quem estiver em Salvador no próximo dia 28. O poeta Ruy Espinheira Filho (org.) lança a Antologia Poética de Affonso Manta (1939-2003), obra apresentada pelo poesia.net na edição anterior. O livro foi publicado pela Academia de Letras da Bahia com o patrocínio da Assembleia Legislativa do Estado.

Data: 28/11, quinta-feira
Hora: 18h00
Local: Academia de Letras da Bahia
Av. Joana Angélica, 198 - Nazaré
Salvador - BA
Carmen Miranda convida
Frank Bidart

                                                                    Tradução: Carlos Machado
 


MARTELO

O braço de pedra ergue um martelo de pedra
e sonha descer sobre si mesmo.

Quando a busca é indecifrável —
... fica apenas um percurso.

O que um dia foi apreendido com paixão
sobrevive como ponto de vista.

Ser tanto o autor desta
estátua como a própria estátua.



HAMMER

The stone arm raising a stone hammer
dreams it can descend upon itself.

When the quest is indecipherable, —
... what is left is a career.

What once was apprehended in passion
survives as opinion.

To be both author of
this statue, and the statue itself.



Paul Klee - Em Torno do Peixe
Paul Klee (1879-1940), suíço-alemão, Em Torno do Peixe



CANÇÃO


Você sabe que é ali a toca
onde o urso por algum
tempo deixa de existir.

Entre. Afinal, você matou bastante e comeu
bastante para ficar gordo o bastante
e por algum tempo deixar de existir.

Entre. É preciso talento para viver à noite, e esconder
dos outros esse talento, mas agora você fareja
a temporada em que é preciso deixar de existir.

Entre. O que cresce dentro de você,
para o bem ou para o mal, exige que
por algum tempo você deixe de existir.

Não está chovendo lá dentro
esta noite. Você sabe que é lá. Rasteje e entre.



SONG

You know that it is there, lair
where the bear ceases
for a time even to exist.

Crawl in. You have at last killed
enough and eaten enough to be tat
enough to cease for a time to exist.

Crawl in. It takes talent to live at night, and scorning
others you had that talent, but now you sniff
the season when you must cease to exist.

Crawl in. Whatever for good or ill
grows within you needs
you for a time to cease to exist.

It is not raining inside
tonight. You know that it is there. Crawl in.



Paul Klee - Vista de St. Germain
Paul Klee, Vista de St. Germain



ESTROFES TERMINANDO COM AS MESMAS DUAS PALAVRAS

Primeiro, me senti receoso porque havia entrado
pela porta que dizia Tua Morte.

Nenhuma palavra de valor se
desentranhava de tua morte.

És a ruína cujo braço enlaça a mulher jovem
no bar póstumo, antes de tua morte.

Acima de ti, a grama ainda
está faminta, alimentada por tua morte.

Mata quem matou teu pai, disse tua vida
voltando-se de novo para mim antes de tua morte.

Difícil envelhecer e manter a fome.
Ainda tinhas fome na hora de tua morte.



STANZAS ENDING WITH THE SAME TWO WORDS

At first I felt shame because I had entered
through the door marked Your Death.

Not a valuable word written
unsteeped in your death.

You are the ruin whose arm encircles the young woman
at the posthumous bar, before your death.

The grass is still hungry
above you, fed by your death.

Kill whatever killed your father, your life
turning to me again said before your death.

Hard to grow old still hungry.
You were still hungry at your death.



Paul Klee - Com o Sol se Pondo
Paul Klee, Com o Sol Se Pondo



INJUNÇÃO

Como se os nomes que usamos para nomear os usos de prédios
fossem raios x de nossas almas, guerra sem fim:

Palácio. Prisão. Igreja. Escola.
Mercado. Teatro. Bordel. Banco.


Guerra sem fim. Porque nomear é possuir
os sonhos de estranhos, que profanam

a igreja, que pede a extinção do bordel, agora teatro, agora escola; a escola
despreza igreja, palácio, mercado, banco; o banco ao

recusar-se a nomear seus correntistas dá boas-vindas a todos, embora prisioneiros
raivosos tentem a cada noite reduzir a pó mais uma pedra sob o palácio.

Guerra sem fim. Por conseguinte tempo após tempo;

Rasgue o tecido. Pregue-o. Não
na parede. Rasgue através

da parede. Lá fora,

o tempo. Pregue-o.




INJUNCTION

As if the names we use to name the uses of buildings
x-ray our souls, war without end:

Palace. Prison. Temple. School.
Market. Theater. Brothel. Bank.


War without end. Because to name is to possess
the dreams of strangers, the temple

is offended by, demands the abolition of brothel, now theater, now
school; the school despises temple, palace, market, bank; the bank by

refusing to name depositors welcomes all, though in rage prisoners each
night gnaw to dust another stone piling under the palace.

War without end. Therefore time past time:

Rip through the fabric. Nail it. Not
to the wall. Rip through

the wall. Outside

time. Nail it.



               De Star Dust (2005)



Paul Klee - Anatomia de Afrodite
Paul Klee, Anatomia de Afrodite



FOME DO ABSOLUTO

A Terra você sabe é redonda mas parece chata.

Você não pode confiar
nos sentidos.

Você pensa que já viu todo tipo de criatura
porém não

esta criatura.

*
Quando o conheci, sabia que

me havia desmamado de Deus, não
da fome do absoluto. Ó boca

insaciável pronunciando o que é e deve
permanecer inapreensível —

dizendo Você não é finito. Você não é finito.



HUNGER FOR THE ABSOLUTE

Earth you know is round but seems flat.

You can't trust
your senses.

You thought you had seen every variety of creature
but not

this creature.

*
When I met him, I knew I had

weaned myself from God, not
hunger for the absolute. O unquenched

mouth, tonguing what is and must
remain inapprehensible —

saying You are not finite. You are not finite.



Paul Klee - Mulher Acordando
Paul Klee, Mulher Acordando



RIO


Estou aqui para consertar a porta.

O uso quase a destruiu. O desuso
faria o mesmo efeito.

Não, você não está confuso, você não
telefonou. Quem telefona ainda tem esperança.

Você crê que até hoje viveu
sem a necessidade de portas.

Carmen Miranda
na TV convida você para o Rio.

Vá dormir enquanto conserto a porta.



RIO

I am here to fix the door.

Use has almost destroyed it. Disuse
would have had the same effect.

No, you're not confused, you didn't
call. If you call you still have hope.

Now you think you have
lived past the necessity for doors.

Carmen Miranda
is on the TV, inviting you to Rio.

Go to sleep while I fix the door.



Paul Klee - Conquistador
Paul Klee, Conquistador



SONHO REVELA EM NEON OS GRANDES VÍCIOS


AMOR e seu simulacro, sexo.

As palavras, como uma fogueira em caixa
de vidro, reluziram no horizonte.

PODER e seu simulacro, dinheiro.

FAMA e seu simulacro, celebridade.

DEUS, sucedido
pelo que sobrevive à fé, o desejo de ser

Santo.

Semeia as tuas obsessões, elas são
os vícios que tentam tua alma.


Depois, vendo a palavra ARTE, acordei.

*
Recusaste amor, poder, fama, santidade, tua
tática, como a do modesto

César, é fingir indiferença e recusa.
És adicto do que não podes possuir.

Não sabes dizer
se os vícios, segredos, narcóticos

arruínam ou ampliam
a mente com a qual apreendes o mundo.



DREAM REVEALS IN NEON THE GREAT ADDICTIONS

LOVE, with its simulacrum, sex.

The words, like a bonfire encased
in glass, glowed on the horizon.

POWER, with its simulacrum, money.

FAME, with its simulacrum, celebrity.

GOD, survived
by what survives belief, the desire to be

a Saint.

Seed of your obsessions, these are
the addictions that tempt your soul.


Then, seeing the word ART, I woke.

*

Refused love, power, fame, sainthood, your
tactic, like that of modest

Caesar, is to feign indifference and refusal.
You are addicted to what you cannot possess.

You cannot tell if
addictions, secret, narcotic,

damage or enlarge
mind, through which you seize the world.


               De Metaphysical Dog (2013)



poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2013





Frank Bidart
•  Star Dust
    Farrar, Strauss and Giroux, New York, 2005
•  Metaphysical Dog
    Farrar, Strauss and Giroux, New York, 2013
    Traduções de Carlos Machado
___________
* Hélio Pellegrino, "O Trabalho e o Sonho", in Minérios Domados (1993)
___________
Todas as imagens são pinturas de Paul Klee (1879-1940), suíço naturalizado alemão



Created with 10CentMail - Secure Unlimited Email Marketing App. No monthly fees. 10 cents per 1000 emails. Powered by Amazon.