quarta-feira, 2 de maio de 2012

poesia.net (279)



poesia.net 279 - Alberto Bresciani
Número 279 - Ano 10
São Paulo, quarta-feira, 2 de maio de 2012
«A Paz é uma ficção da Fé » (Emily Dickinson) *

Alberto Bresciani

Caros,


Nesta edição, o poesia.net destaca o trabalho do poeta carioca Alberto Bresciani (1961-), um carioca há mais de duas décadas integrado às avenidas e superquadras brasilienses. Magistrado de profissão, Bresciani investe muito de suas horas livres na leitura de poesia. Conhece não apenas os clássicos, mas está sempre à escuta de novas vozes e mais recentes refinações da palavra.

Embora escreva e se sinta envolvido com a poesia há bastante tempo, Bresciani publicou seu livro de estreia, Incompleto Movimento, somente em 2011, quando completou 50 anos.  Autor de poemas curtos e frases parcimoniosas, o poeta parece perseguir a essência do que pretende exprimir.
 
O que se encontra em Incompleto Movimento é uma poesia de perquirição do avesso das coisas. "Só o que destila / por trás do que me é oculto / se esconde à vista // É grampo no avesso / ― até a secreção" (Reinvenção).  Para essa tarefa de levantar véus e tentar expor à luz o lado obscuro de nossos passos e vivências, o poeta se arma com a curiosidade e a obstinação de um microbiologista.

Essa observação minuciosa está em cada um dos poemas. Até mesmo num poema levemente erótico, percebe-se o silêncio e, num crescendo, "o pressentimento / o pacto e o voo" (Harmonização).  É sempre a sutileza, o cisco, o grão de pó, a nota breve e leve, quase inaudível para ouvidos menos atentos e afinados.

Essa característica domina a maioria dos poemas enfeixados no livro de Bresciani. As indagações existenciais percorrem a mesma pauta, sempre em tom menor: "Somos ficção / Simulamos o invisível / e a imagem / no reflexo / do espelho".

A poesia de Alberto Bresciani não é de leitura fácil nem de comunicação imediata. Exige certa disposição do leitor para debruçar-se sobre o texto. Os apressados, os que procuram extrair efeitos explosivos e imediatos, talvez se cansem antes de alcançar o nível das sutilezas.

Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado
 
                      •o•

O SERTÃO VIROU LIVRO
Uma história intrigante, que merece registro e admiração.

O lugarejo de São José do Paiaiá fica no município de Nova Soure, no sertão baiano, quase na divisa com Sergipe, a cerca de 300 km de Salvador. Com 500 habitantes, Paiaiá tem o que os moradores chamam de a maior biblioteca rural do mundo. De fato, trata-se de uma biblioteca cujo acervo já anda por volta dos 100 mil livros. Além de abrir as portas todos os dias, inclusive nos domingos, a entidade oferece cursos de pintura e crochê e promove atividades culturais e esportivas. Essa maravilha traz ao minúsculo Paiaiá estudantes da sede do município e de vários lugares vizinhos.
Nem a criação nem o funcionamento da Biblioteca Comunitária Maria das Neves Prado ― este é o nome oficial do colosso de Paiaiá ― se devem à iniciativa do município, do Estado ou de qualquer órgão oficial. Tudo começou com a coleção de livros pessoal de Geraldo Moreira Prado, um respeitável paiaiaense, hoje com 71 anos. Egresso do povoado aos 14 anos, ele estudou na USP nos anos 60 e depois mudou-se para o Rio, onde se tornou professor universitário. Com recursos próprios, Moreira Prado bancou o envio dos livros para o torrão natal, a instalação, a manutenção e depois a expansão da biblioteca. Impressionado com a iniciativa, o crítico literário Antonio Candido, que foi professor de Moreira Prado na USP, doou à biblioteca uma parte de seus próprios livros.

Leia mais sobre a biblioteca de Paiaiá na reportagem Livros brotam no sertão, da revista Piauí de fevereiro deste ano.



                      •o•


 
O avesso das coisas
Alberto Bresciani
 


SEDIMENTOS

Aos poucos se apaga
o consentimento da morte

adio a noite, avanço
ao avesso do dentro

e encontro os encontros
do tempo, um gosto

de pele, um nexo
Faço oferendas

à água
ao fogo.



"grades e escarpas / ruindo sob as pernas / cúmplices, entrelaçadas" (Alberto Bresciani)

Gagik Maoukian (Armênia, 1952), Loving Couple, óleo sobre tela


HARMONIZAÇÃO

Demorasse a tua mão
um pouco mais
sobre o meu ombro

e me nasceriam asas

Em silêncio
logo o pressentimento
o pacto e o voo:

grades e escarpas
ruindo sob as pernas
cúmplices, entrelaçadas

                    as nossas.



REINVENÇÃO

Vertendo do branco:
eu, o anti-herói
preso a ganchos de ar
por sobre as fragas da razão

duras lâminas
que evisceram
a argamassa do corpo
a desbordar de mim

banal, rude, rala argila
não reluz. Só o que destila
por trás do que me é oculto
se esconde à vista

É grampo no avesso
até a secreção
vir à voz, exposta
aos anjos e algozes

Então o instante que espero
quando me reinventam os dias
e as aves planam
sob o vulto explícito e sem sede

Gritem medos e mentiras
para o estômago do nunca
(o julgamento está surdo
e a tentação de não ser

para hoje
está morta
    afogada).


POSSE

O ar é só pele:
teu corpo expira
das dobras do mapa

aquece os dedos
saliva doce na boca
as esferas do sal

A falta é tensão
teu vulto invasivo
conturbando o pulso

em pedras candentes
nas farpas da noite

O ventre esfria
e explode em tentáculos
da fluida água marinha

vertigem que plana e pesa
por sobre as vozes
os cortes do dia

                 — teu sempre
               no fundo de mim.



METAMORFOSE

Era seu rosto
um campo de trigo
e manso se entregava
ao passeio da boca

Braços me protegiam
e enlaçavam
e devolviam ventos
que ninguém sentiu

Desdobrava-se
o seu consentimento
e sem proposições
uma supernova em mim

Talvez reencontrasse o destino
respirasse sem deformidades
talvez fosse apenas como voltar

E já não chovia
E era tão bom.




Wassily Kandinsky (1866-1944), russo


INVERSÃO

O esgotamento vem
do vazio
esse fundo
enredo de vozes
que uma só valem


atrás dos nódulos do espanto
das folhas da súplica
e da sequência de sombras
sem volta,

a ilusão habita
a insônia
vergonha e ridículo
do homem parado
diante da pedra.



MIRAGEM

Somos ficção
Simulamos o invisível
e a imagem

no reflexo
do espelho
ali nada há
como nada somos

Onde encontrar
a verdade
ou a real essência

desses fantoches
de nós mesmos
se os mistérios

não estão em lugar
mas no que mais fundo
escondemos?


 
poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2012

Alberto Bresciani
•  Incompleto Movimento
    José Olympio, Rio de Janeiro, 2011
______________
* Emily Dickinson, trad. de José Lira,
   in A Branca Voz da Solidão (Iluminuras, 2011)
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Imagem 1: Gagik Manoukian. Art Hit Gallery
Imagem 2: Wassily Kandinsky

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